Carta Primeira

Minha querida,

Espero que esta carta surpresa te encontre bem, aqui por casa também está tudo bem.

Muitas das cartas que me foram lidas em miúdo começavam assim… com uma esperança e depois uma segurança. Desejava-se que o encartado estivesse bem, nem que fosse o suficiente para ler o que fora escrito com tanta intenção e desejo. Lembro-me bem de as recebermos em casa quando era miúdo, cativavam-me. Eram como as carteiras de auto-colantes, misteriosas arcas seladas à espera de um aventureiro que revelasse o seu prémio. Nos anos oitenta eram habituais em minha em muitas casas, mas deixaram de aparecer à medida que os tempos foram mudando e quem as enviava foi partindo. E com eles, também esse meu encanto se foi indo, até morrer com a Internet.

Demoravam a chegar, tínhamos que ir a um marco, ter envelopes e selos e cuspo… enfim, praquê essas chatices quando podíamos enviar um SMS ou email? A comodidade e rapidez haviam vencido e depois dessa guerra, só voltei a pensar nisso mais de vinte anos depois, ao dar volta ao sótão. Encontrei por acaso a máquina de escrever dos meus pais e senti um desejo inexplicável de a usar. Não percebi porquê mas lá a trouxe e limpei e sentei-me pronto na sala, imaginando-me um pianista duro de ouvido. Porque confesso-te que me envergonhei de bater nas teclas, não era aquele suave piu-piu-piu do teclado mas um TUM-TUM-TUM de martelo!

Depois vieram os problemas de amador: o que vou escrever; e para quem; para que serve esta e aquela tecla? Mas quase duas horas depois lá consegui uma página. As frases saíram ligeiramente tortas porque inseri mal a folha; as margens desalinhadas; muito espaço entre as frases porque o rolo está gasto e não puxava bem o papel; caguei os dedos todos na fita a pensar que tinha que a virar mas afinal não era preciso; não me apercebi e sujei a folha com uma dedada... Enfim, tudo uma maçada que me roubou três horas de vida que não ia recuperar. Arrumei a máquina a pensar na guerra que aquele mono havia perdido e confesso-te, não chorei quando fui prá cama.

No dia seguinte reencontrei-me com a folha que bati, esquecida na mesa e floriu em mim um encanto inesperado. Passei as pontas dos dedos nas letras prensadas e o relevo fez-me sorrir, apesar das linhas vesgas e algumas letras tingidas de vermelho, salpicadas quando a fita era martelada a meio. Abanei a cabeça ao relembrar a estranheza de usar o l para substituir o l porque o teclado não o tinha, os números começam no 2. Tinha dado erros e feito marcha-atrás apenas para os rasurar e seguir em frente. Estanquei e remendei como consegui, como um médico na frente da batalha, sem tempo a perder. Não me lembrava da última vez que havia visto uma folha impressa com rasuras, borrões e desalinhados.

Era grotesca e bela e foi com esse pensamento que reabri a mala e comecei "Minha Querida".

Perguntaste-me como era viver sozinho depois de tanto tempo e acho que isso mudou o meu relacionamento com o tempo mas não com o silêncio.

Demorei a interiorizar que é ok levar tempo a fazer as coisas, que isso não me devia fazer sentir (muito) angustiado. Hoje, dou por mim a levar mais tempo e a não me sentir tão mal por causa disso - dantes era terrível. Procurava estar sempre ocupado e a preencher freneticamente o tempo com tarefas, sempre em piloto-automático saltitando de tema em tema até adormecer para no dia seguinte voltar a repetir. Havia sempre o desejo de ser a lebre mas hoje percebo porque ganhou a tartaruga.

Há quem não consiga estar muito tempo em silêncio, de conviver com os outros ou consigo em silêncio… precisam de ruído, de música ou televisão de fundo para se sentir acompanhadas. Há quem beba, leia, escreva, fume, saia para assustar a solidão mas sempre achei que tudo isso fazemos para, afinal enxotar a morte.

Vá, não só, mas também. O silêncio é aquele buraco que conduz à toca da introspecção que desagoa sempre no mesmo abismo. É preciso ser-se velho para pensar na mortalidade? Ia escrever que os mais novos não pensam muito nisso mas imagino que sim, eu pensava. Não era por acaso que o candeeiro-globo-mundo ficava aceso toda noite e lembro-me de deitar e fazer um grande esforço a pensar no que viria "depois". Fixei muito tempo o tecto iluminado pelas cores do candeeiro, angustiado pela realização de que a seguir a isto não há nada. Esse medo do escuro depois passou, o da morte... desensibilizou.

Não achas pouco saudável a forma como encaramos o fim da vida no Ocidente? Como se houvesse uma maneira sã de o fazer né? Mas como uma coisa que não se fala ou muito a medo, que não se vê e até se esconde. Será da cultura, da educação ainda de raízes fortes na religião? Haveria tanto por dizer sobre isto. No Oriente antigo, o Código de Honra do Samurai (Bushidô) estipulava que deviam ter a todo o tempo, a morte presente no seu espírito.

Das primeiras páginas:

… A vida humana é como o orvalho e o gelo da manhã. São frágeis e efémeros. (…) Tendo a morte sempre presento no espírito, quando falas ou respondes aos outros, compreendes o peso e o sentido de cada palavra (…)

Segundo isto, não terá só a ver com a meta, mas com a preparação e a qualidade da corrida. Achas que desta forma se evitavam aqueles arrependimentos de fim-de-vida? Já vi entrevistas da II Guerra onde Ocidentais comentavam o “descuido dos Japoneses com a sua própria vida” mas outros acertavam no ponto ao afirmar que encaravam simplesmente a sua existência de uma forma diferente. Vivendo nesse rigor de ter a morte sempre presente, uma constante e não um acaso, tornava-os destemidos além dos limites ocidentais. Claro que a isto se juntou a propaganda da altura, a pressão social, a lavagem-cerebral de que "morrer pelo Imperador era a maior honra", mas mesmo apesar dos motivos, o resultado foi e é poderoso.

E deixa-me a pensar se com esta perspectiva, viveram sem os tais “arrependimentos”. Se saíam de casa sempre com a cama feita, sempre com um beijo sentido à mulher e a levar o lixo do dia anterior. Tudo porque dali a umas horas, podiam já não estar lá para o fazer.

Seria uma sociedade muito diferente desta, que faz outsourcing dos cuidados em fim-de-vida ou antes disso. A perspectiva sobre a morte, o seu entendimento, a forma de a sentir, parece-me meio infantil. Descartamos os velhos para lares a passar os seus últimos dias em camas de hospital, à espera que chegue "o momento". É certo que há quem não tenha posses ou tempo para os ter consigo mas no passado também não havia e as pessoas morriam em casa. O que mudou?

Recentemente falava com um amigo cujo pai já não está nada bem e precisa de cuidados. Não o vai ter em casa no Natal porque não quer que os miúdos tenham uma má experiência. Podia acontecer "alguma coisa", e eu concordei - não há como não dar prioridade aos pequenos. Ou há? Devemos proteger os pequenos, guardando-os das mudanças radicais do tempo, dos efeitos cruéis que exercem sobre nós, porque eles terão tempo de descobrir... ou o tempo da descoberta é agora?

Ninguém quer o cheiro da morte onde vive, onde come, onde ama. Amor e empatia são contraditórios à auto-preservação, cuidar em morte implica abnegação. Sinto-o contra-natura e não sei explicar bem porquê. Talvez por obrigar à vulnerabilização, a despir o "eu" e a armadura que erguemos para enfrentar o desconhecido que, um dia, nos vais engolir também.

Será que se a nossa repugnante mortalidade estivesse sempre presente no nosso espírito, isto acontecia? Tenho ideia de ter ouvido o Ricardo Araújo Pereira dizer que “o riso foi uma coisa inventada pelo ser humano para espantar a morte”, para nos tornar invencíveis ainda que por breves segundos, ante o inevitável.Há uma entrevista que ele deu à Ecclesia, em que ele fala exactamente da ligação entre a morte, o riso, Deus e a própria razão da existência. Não encontrei respostas, mas encontrei algum conforto.

Pode alguém, hoje em dia, pedir mais?

Beijo grande

X