Beijado
plo fogo

Ainda hoje uso uma expressão que herdei do meu pai "mordido plo gelo". Era como chamava às frieiras que apanhava quando ia para a serra aos Sábados de madrugada. Acompanhado de si. Segui-o umas vezes à socapa, queria tanto saber o que tanto fazia naquelas manhãs. E sabem que mais? Nessas caminhadas o meu pai falava com Deus.

Sim, isso mesmo. Ah, não façam essa cara, afinal estamos todos aqui para relembrar a vida e o Homem que foi. Mas isto é mais para as caras novas às mesas, vejo muitas caras novas.

O meu pai, o Senhor Grou falava com Deus sim senhor, porque dizer-vos que falava sozinho não é de todo correcto. O homem falava do que o preocupava, da vida, do trabalho, da família, pensamentos que lhe pesavam fundo no coração sobre coisas que não nos conseguia dizer. Todos os que conheceram o meu pai sabem que era um homem muito privado. Generoso e dado, mas trancado em si mesmo. Alguns dirão demasiado, eu direi que era o suficiente.

Nunca lhe contei isto... numa dessas vezes, a última, o meu pai falou com Ele sobre mim. Que me tinha tanto amor que não conseguia muitas vezes explicar porque não o conseguia expressar. Perguntou a Deus porque o fizera daquela forma, uma caixa fechada numa sala escura onde há muito se perdera a chave. Nesse dia, Deus fora intermediário da conversa mais longa que o meu pai alguma vez teria comigo. Depois dela, não o veria nunca mais da mesma forma. Lembro-me de chegar a casa zonzo, de tomar banho e me deitar sem jantar, tal tinha sido o efeito daquelas palavras num gaiato de treze anos. No dia seguinte lembro-me dele me acordar com um puxão de orelhas porque me deixara dormir duas vezes. Quando desci para o pequeno almoço disse que só podia beber uma chávena de café, porque todos já estavam a terminar e não tinha tido respeito pla família. Lembro-me de deixar escapar umas lágrimas enquanto a nossa mãe e irmãs se levantavam com os pratos cheios de migalhas. Ele não se mexeu enquanto elas levantaram a mesa num ápice, e eu também não. O meu irmão ainda pensou em tentar alguma coisa mas desistiu rápido. Minutos depois só estávamos eu, fixo na paisagem lá fora e o meu pai atento ao jornal. De repente fechou-o e levantou-se dizendo "Um homem nunca deixa uma senhora esperar". Com isto, atirou-me uma maçã para o colo e saiu.

O meu pai não era um homem de afectos fáceis, mas sem dúvida que eram seguros. Hoje olho para trás e sinto falta daqueles almoços de Domingo. "Felicidade é família, mesa cheia e peito farto." Essa, ele herdou do avô Augusto, mas era o Augusto Grou Filho, que os meus tios e primos faziam quilómetros no último domingo do mês, para ver e ouvir. 3 mesas enormes lado a lado, sentavam por ordem, os mais velhos, os adolescentes e os mais pequenos. Eu juro que sonhava com o dia em que me ia poder sentar com os adultos. Mas nesta altura, ainda tinha uma mesa inteira pela frente. O que eu suspirava…

Sábado quando ele ia para a caminhada, a nossa mãe passava o dia na cozinha. Discutiam religiosamente, ele a querer ajudar, ela a enxotá-lo de casa. As minhas irmãs eram recrutadas ainda o sol não tinha nascido e a nossa mãe nunca as acordava... Porque elas nem dormiam. Quando eu descia ao final da manhã com o meu irmão, enfeitiçados pelo cheiro a doces, sabíamos que estávamos proibidos de entrar na cozinha. Fazíamos planos de ataque, desenhos avançados com estratégias militares porque aqueles bolos tinham que ser nossos. As vezes conseguíamos, outras não.

Os tios, primos e pais todos sentados a comer ensopado, muito queijo, muito pão e todo o vinho da região. Todos tinham um papel e uns mais afortunados até título tinham, o meu era Capelão. Porque o meu tio Américo achava que sabia fazer vinho, insistia em trazer para toda a família. A minha missão, antes do almoço, era aliviar alguns garrafões de vinho e juntar-lhes água.

"A tua missão é muito importante Pedrito", dizia-me ele com uma cara sempre séria e eu sério a encarava. "O capelão não pode falhar nunca, senão... ninguém chega a domingo." Alguns de vós vão querer saber e antes que perguntem a alguém que esteja ao vosso lado, eu explico. Capelão, porque alguém tinha que baptizar aquele vinho para expulsar o demónio, não era tio Américo?

Todos vocês, quando estavam já tocados, chamavam Martelo ao tio Américo, lembram-se? Depois de missão cumprida e às escondidas da nossa mãe, os tios Armindo e Antunes davam-me sangria as escondidas para premiar o bom trabalho. Sempre debaixo de olho do meu pai que fingia nada ver. Eram "dias de dentes à mostra". Brancos, amarelos e alguns já em falta, é incrível como me lembro tão bem de toda a gente a sorrir. Inchados, grávidos de alegria.

E no meio de toda esta felicidade, nunca por um momento imaginei que o meu pai não o fosse. Conhecera a nossa mãe pouco depois de sair da tropa, novos ainda, sabiam lá o que era ter e criar filhos. O pai vinha de uma família enorme e sempre quis muitos filhos. A mãe era sozinha, os pais morreram cedo e foi criada por uma tia de quem nunca teve grande afecto e nunca perdeu aquele brilho no olhar sempre que olhava para ele. O meu pai era um colosso, um gigante, vocês lembram-se. Parecia esculpido do granito destas terras, animado por pura força de vontade. Eu já homem e isto já no fim, ele ainda fechava a sua mão na minha como se fosse a de uma criança. E era.

Tinha um fascínio pelo fogo. Era um gozo para ele acender a lareira, demorava o seu tempo. Parecia quase um ritual. Quando vocês só queriam despachar o assunto, o meu pai era diferente, tomava o seu tempo. Saía ao final da tarde para colher galhos num grande cesto de verga, gostava de misturar os secos com uns tantos verdes e é curioso pensar nisso hoje, porque parecia-me que haviam aromas diferentes para o que saía da lareira. Às vezes usava mais pinhas, outras cedro, experimentava com diferentes quantidades, diferentes ingredientes, como se fosse uma receita para o conforto. Depois, sentava-se na poltrona para a sossega, a fumar o seu cachimbo até dormitar depois de um cálice generoso de porto.

”És um escravo do fogo”, ouvia as vezes a minha mãe dizer entredentes, quando ele desaparecia, perdido nas chamas. Foram anos depois que eu percebi e que fez sentido uma conversa que ouvi a minha mãe ter ao telefone. Que tinha ido a uma amiga em comum e que alguém lhe disse que ele tinha sido beijado pelo fogo. Só anos depois eu percebi o que isso queria dizer, porque a única mulher que o meu pai alguma vez verdadeiramente amou, não foi a minha Mãe.

O nosso bisavô e avô morreram na cama do primeiro andar, e era desejo do velhote lá morrer também. Nos últimos dias, nesta casa onde viveu a vida inteira, pedia-nos para abrir as cortinas e escancarar as janelas que dão para o pátio, onde a paisagem da quinta se perde de vista.

"Fui mordido pelo gelo", disse-nos muita vez, naqueles últimos dias. Fiz o meu papel. Estava com ele quando partiu, mas era a sua mão que embrulhava a minha, sempre forte. Segura.

Numa das últimas vezes que foi coerente, puxou-me para si e abriu. Disse que nos amava e pediu "pica as chamas filho". Atirei dois toros de carvalho com cedro e pinho seco, e ele perguntou-me com a voz de outros tempos "tu sabes?". Engoli em seco, cerrei os punhos, os dentes, o coração... e só quando as lágrimas pararam é que consegui responder-lhe.

"Sim pai, foste beijado plo fogo."

Mas ele já não me ouviu.