Dois corações

Enquanto tu dormes baixinho e voas para longe, como quem parte para uma grandiosa jornada, faço o papel daquele que lá te vai dizer adeus. E lá fico, a ver-te partir.

Acompanho mentalmente os teus passos, não deixo que nada me distraia, pois os meus olhos estão fixos nos teus. Vejo a mesma almofada, o mesmo nevoeiro, o mesmo avião. É sempre assim, quando estás para chegar e para ir. E enquanto vais não vais, outra, que já não és tu, mas que ainda é, aperta a minha mão em jeito de brincadeira. Como se fosses uma criança reguila, receosa de se perder num aeroporto cheio de desconhecidos. “Porque é que não confias mais? Não é preciso tanta força.”, digo-te ao ouvido, mas tu já não ouves, já foste. Ainda tento gritar, enquanto corro atrás do comboio ou avião(?), mas já não interessa… já foste.

O que tu não sabes é que continuei a segurar-te, mesmo depois de teres partido. E quanto mais tempo passava, mais forte te apertava, porque te sentia escoar por entre os braços, por entre as mãos, até mais nada restar a não ser o mesmo nevoeiro que deixaste ao partir.

“Não sentes pena de mim?” Pergunto-me muitas vezes, enquanto dormes, baixinho, na esperança de ser hoje que oiço um “não”. Apanho os pedaços de ti, espalhados pelo quarto, pela cozinha… por mim, e penso “Não tens coração.”

Adormeço e a primeira coisa que faço é pôr tudo para lavar. Tudo o que tenhas usado ou tocado, os sofás, os jogos, os livros… até os quadros. “Não tens remorsos?” quando sentes lá longe, algures num reino perdido que fui de madrugada desenterrar um pedaço de ti, só para ter a ilusão que estás de novo comigo? “Não te sentes mal?” quando sabes que me consumo em desejo de te ter outra vez e outra vez e outra vez e…

Não, porque já foste. Já adormeceste, já partiste, já estás longe. Mas a cada visita, insistes em deixar pedaços de ti, restos de memórias que anunciam a tua chegada e que são a minha loucura quando partes! Fragrâncias que são como a peste, que ardem cá dentro.

Não te pergunto se tens coração, sei que tens dois. Um no peito e outro na mão.