Vejo-te

Do outro lado do balcão. O estômago aperta, as pernas tremem-me ao dar à luz uma criatura de olhos verdes. Esta berra por ti, no canto onde guardo o sentimento porque tu, uma mulher, és o seu pai! Geraste em mim um monstro, uma besta descontrolada que se agita numa jaula e que disputa em fúria a minha sanidade. Tomaste de assalto os meus sentidos, o meu universo, e do seu centro me ignoras como o Sol despreza a Lua, porque não arde com amor-próprio.

Engulo-te com a vista e a besta devora-te esfomeada, e sossega no meu peito. Espio por entre as frestas das minhas persianas quando sacas de um jeito nervoso, à procura do isqueiro. Assisto enquanto espalhas as miudezas da carteira em cima do balcão, mordes o lábio, procuras à tua volta com um cigarro fechado na mão. *É agora.* Encaro a garrafa meia cheia e dou a volta ao mundo até ti, em dois goles. Acendo o zippo num passe de mágica. *Surpresa.* Abraças-me deslumbrada, regando de perfume as feridas que o teu sorriso abriu. Passam horas e quando finalmente me libertas, fios de seda acarinham-me o braço. Suaves, ganham vida debaixo dos feixes de luz, borrifando a fragrância do amor de perdição.

Incandesces a cada baforada, como as brasas, mas sou eu que ardo. Envergonhado. Dou por mim enciumado quando saltas prá pista de cigarro na boca e whiskey na mão. E de cada vez que os vossos lábios se tocam, sinto a criatura mexer, alcoolizada plo teu perfume. As luzes mais brilhantes, os sons mais intensos, os movimentos mais hipnotizantes.

Os primeiros acordes de Keep Me rebentaram nas colunas e tu saltaste para a pista ao encontro dos Black Keys. Cortaste caminho por entre a mediocridade para te instalares no teu lugar e lá explodir, com a força de uma estrela, fazendo-os gravitar à tua volta. No final, sais, cobrindo-os de noite e eu abeiro-me do poço pra te dar a mão. É o suficiente para os vermes rodarem nos calcanhares.

Vou ao bar enquanto desapareces no desconhecido, levando sempre a luz contigo. Daqui a minha visão não alcança e os perigos espreitam. Sinto a besta na boca, disseste que não demoravas, mas conheço-te bem demais. Regressas eufórica e de olhos raiados, à frente de um rafeiro que rondava carne fresca. Confiante, no sorriso rasgado espreitava uma fileira de dentes mentirosos. Estende-me a pata que eu aperto distante, sem conseguir esconder o nojo. Puxo-te à parte, paciente, educado, como o cavaleiro que sou.

“Vamos embora, já chega por hoje”, mas tu nada. “Esse gajo não vale nada, vai-te magoar e tu sabes”, regressa com o teu cavaleiro. Mas tu nada. É um rafeiro com cio, só está à procura de uma coisa e tu estás tão fora de ti que não vês, “Por favor? Por mim, por ti, porque amanhã...” Mas tu nada, e quando ele se aproxima segredando promessas, tomas-me as mãos e “Até amanhã”.

Ele puxa-te pelo braço e eu eriço-me. O puto.

Armou-se a teus olhos para te salvar e cada peça de marca, do elmo ao escudo, brilhava a teus olhos. Não percebes que é só folha de prata barata, daquela que vem em rolos para a cozinha? Na tua mente, talvez até imagines uma história de como foste salva por um grande cavaleiro. Um homem bom e lindo que vai levar-te daqui e mudar a tua vida. Que te salvou do bafo entediante do dragão e dos seus sermões. Saíram a cavalo e ele abriu alas para ti pelo meio da multidão ensurdecida para juntos fazerem da noite dia, e do meu dia noite. Sinto o bicho em mim e bebo. *Nada, nada minha besta.*

O resto da noite passa em relâmpagos fluorescentes e pequenos copos em chamas. Não me lembro de chegar a casa e acordo com uma ressaca terrível. Saio da cama a custo e vejo as horas. *Merda, dormi demais.* Tomo um duche, visto-me e saio apressado para te encontrar no banco de jardim. *Não choras onde dormes, se não vives num cemitério.*

Sento-me e tomas-me a mão. Sinto a besta sangrar, fraca, tenra como a carne que compramos no talho. *Esses olhos castanhos enormes e lindos não foram feitos para chorar.* Pausas para me dar razão e continuas. Passas da mão para o braço onde te enleias como uma serpente, com tanta força que adormece.

Seco-te as lágrimas, encosto o meu queixo à tua testa e impludo de desejo. De cuidar e não largar, de abraçar e não parar, de proteger e não ceder. Ficamos ali os dois colados, a ver os pássaros que alimentam os velhos solitários. Faço-te rir, sopro as nuvens e finalmente voltas a raiar.

A caminho de casa fazemos planos não conjuntos, assentes em sonhos que nunca casam. “És o meu melhor amigo”, és a morte por mil cortes. E quando finalmente fechas a porta, recolhes em mim a Primavera e num ápice, o Outono é Inverno e em pleno Verão, murcham as palavras que brotam dos sentimentos em flor, que sonho oferecer-te em ramos, e não consigo.