E sentes-te um estranho, como se não pertencesses realmente a esta tribo que povoa o local. Diferentes em tudo de ti, mas tão, tão familiares. Voltaste e pareces muito mais pesado.
Ah, mas devias ter visto os olhos desta gente ao ler o teu nome nas revistas. Uns nem queriam acreditar, alguns ainda não acreditam. Outros devoravam os jornais, inchados, mal cabiam nas portas. “O Alquimista Celeste” te batizaram. Com Ó grande, musculado de distinção. Era vê-los frente às câmaras a destapar-te a grandeza, furando elogios aqui e acolá de onde corria uma espécie de água-benta. O povinho, sentia-se no direito. Nunca os enganaste, Sebastião.
Só a mim.
Ela dizia que Deus tinha sentido de humor, mas tanto? De toda a gente no mundo, de biliões de pessoas, logo tu, que não mantinhas um emprego, que saltitavas de namorado em namorado, com notas sempre, sempre miseráveis; o demónio, quando roubavas laranjas, quando apanhavas as tuas bebedeiras e fumavas os teus charros atrás do tanque com aquela trupe de índios maltrapilhos. Sempre em sarilhos. Libertino, descarado, o desgosto do teu velho, a ovelha da família. “Mais valia não ter nascido. Raio do rapaz, sempre de cabeça nas núvens, sempre ausente...” de ti? De mim? Tu, O Actor Principal naquele triste espetáculo ao pé da paragem a que toda a gente assistiu. “Só de ida”, lembro-me do velho dizer ao atirar umas notas ao condutor. “Manda saudades, que cá não deixas nenhumas.” Foi duro contigo. Demasiado duro. Mas o que é que ele podia fazer?
Tu não te governavas nem te deixavas governar.
Tu ainda te lembras da primeira vez que olhaste para os mapas? Os teus olhos brilhavam que nem estrelas, querias saber os nomes todos. Apontavas com uma rapidez, que eu até me engasgava. Onde aterrava aquele dedinho sedento e encardido ficavam trajectórias, rotas, que desenhavas com a imaginação própria da idade. Eras tão esperto. Fazias perguntas atrás de perguntas, corrigias-me, já naquela altura. Teu, era o domínio da matemática sentimental, das ciências pouco exactas da atracção dos corpos. Os salpicos das rotações nas translações salgavam de fantasia as elipses. Pouco fazia sentido, tentei dizer-te, tentei explicar-te mas tu, teimoso como sempre, voltavas prá beira do mar. Pra calcular na areia molhada o que depois as ondas reclamavam.
Nos meus sonhos, volto tantas vezes àquela noite. Sempre tão real, tão vívido. Vejo-a ali, à minha frente, corada de raiva e a barafustar “Ele foge pra ser encontrado”. E dali ao bater da porta é um piscar de olhos, o vento uivava tanto quando fui atrás dela que nem sei como não levantei voo pela praia fora.
Agora aterras e, no nevoeiro da falsidão colectiva, correm pra te estender um tapete vermelho. As mesmas que troçaram que riram e judiaram. As serpentes que te chamavam rainha lá estarão, a prestar vassalagem na inauguração da estátua e da placa na ruela, eternizando o nome da raiz que renegaste. E eu pergunto-me, porque é que regressaste?
Bateste com a cabeça lá no alto? Na fronteira com o infinito? Pensavas fugir ao rebentar das ondas naquela barcarola ferrugenta e flutuante? Pensaste que podias afogar os ecos daquela noite no silêncio, no vazio? Ou foste porque te chamou? Falou-te? Viste-a? Lá em cima, no céu onde ela mora.
Voltaste e atormenta-me o teu silêncio, a tua ausência, mais que nunca. Gostava de falar contigo, mas desconheço a tua língua, emigrante sideral. Esqueci como dizer que te amo, que tenho orgulho em ti, sempre tive. Gostava de reencontrá-la nos olhos que te deu, sentir o calor do teu abraço, ouvir-te contar aqui à lareira essa história incrível que é a tua vida. Talvez nunca venha a conhecer o meu neto ou a ser apresentado ao teu marido mas quero que saibas que, se algum dia decidires visitar-me, tu e a tua família, serão todos bem recebidos cá em casa.
Com esta carta, só quero que saibas que me arrependo de nunca te ter dito que a culpa não foi tua.
Bem-vindo a casa, Astronauta.